Nesta narrativa de Marcos, o destaque é a questão do jejum, uma das principais observâncias religiosas dos fariseus, que é mencionado seis vezes neste texto. Jesus, com seus discípulos, infringia esta prescrição legal, bem como a observância do sábado, conforme os evangelhos registram com freqüência. Em vez de aderir à tradicional doutrina da Lei que com seus preceitos oprimia e excluída o povo pobre e humilde, Jesus vem para libertá-los de todo jugo, civil ou religioso, e comunicar-lhes esperança, felicidade e vida.
O texto de hoje relata a terceira duma série de controvérsias com vários grupos judaicos, iniciada em Mc 2,1. Talvez surpreendentemente, a discussão de hoje se deu não somente com os fariseus, mas com os discípulos de João Batista. Marcos fala disso porque os discípulos de João formavam uma comunidade que sobreviveu à morte do Batista, sem dúvida até o segundo século da nossa era (cf. Jo 3,25). O motivo foi porque os discípulos de Jesus não davam grande importância ao jejum – uma prática que, ao lado da oração e da esmola era muita cara às tradições religiosas dos judeus. Alias, práticas também que continuavam – e continuam – a ter muito sentido para os cristãos de então, e de hoje, se bem com ênfases e expressões diferentes. O Sermão da Montanha, no sexto capítulo de Mateus (Mt 6,1-18), nos dá as orientações de Jesus sobre essas práticas, para evitar que caiam no formalismo e no vazio de serem somente práticas externas que não tocam no coração da pessoa humana. Atualmente na Sexta-feira Santa por exemplo, lotam-se os restaurantes de Curitiba para comer bacalhau caríssimo, uma vez que comer um bifezinho é proibido! E assim se cumpre a lei na letra mas não no espírito.
Mas no trecho de hoje, Jesus não se concentra sobre o jejum como tal, mas sobre o simbolismo de jejuar ou não no contexto das bodas, ou casamento. A imagem de banquete de casamento tinha conotações messiânicas e a referência a Jesus como o noivo tem esse sentido. Com a vinda de Jesus , chegou a hora do casamento, ou seja dum novo relacionamento entre Deus e as pessoas. Mas também neste texto, bem no meio das controvérsias, se faz uma alusão clara à Cruz, ao destino de Jesus, pois “vão chegar dias em que o noivo será tirado do meio deles. Nesse dia, eles vão jejuar”. A fidelidade à vontade do Pai, na pregação da novidade da chegada do Reino de Deus, levará inevitavelmente à morte, pois o velho sistema politico-religioso é incapaz de adaptar-se à grande novidade da Boa Noticia trazida por Jesus.
Por isso, Marcos termina o texto colocando duas frases sobre a relação entre o velho e o novo – o pano remendado e os barris de vinho. A Boa Noticia, com as suas conseqüências sociais e religiosas, é como um pano novo que não pode remendar roupas velhas, e como barril novo que preserva vinho novo. Para acolher Jesus e o seu projeto, é necessário acabar com estruturas arcaicas de dominação e de discriminação. Quem procurar salvaguardar esquemas antiquados e injustos não vai conseguir vivenciar a Boa Noticia. Jesus veio exigir mudança radical, tanto no nível individual como social. Não veio “remendar” mas trazer algo novo – um novo relacionamento entre as pessoas, com Deus, consigo mesmos e com a criação.
A presença de Jesus entre seus discípulos e no mundo é motivo de alegria. É o próprio Deus da vida e do amor presente entre nós, dispensando as práticas cultuais que são feitas em busca de um deus oculto e distante.
Com as sentenças sobre remendo novo em roupa velha e vinho novo em odres velhos fica afirmada a novidade do movimento de Jesus, que se diferencia fundamentalmente da antiga prática religiosa legalista.
O desafio continua hoje – como é tentadora “remendar”- somente fazer algumas mudanças que não atingem o cerne das estruturas de exploração, nem a sua raiz na nossa própria pecaminosidade. Por isso, a sociedade hegemônica, taxando-se muitas vezes de “cristã”, sempre procura cooptar o Evangelho e a Igreja, para que não tenha que mudar. Quando a cooptação e o suborno sutil não funcionam, parte para a perseguição – por isso Marcos desde já aponta para a Cruz. A sociedade moderna, com a sua grande arma nos Meios de Comunicação Social, continua essa cooptação, disseminando uma religião “água com açúcar” de “panos quentes”, dando espaço para movimentos religiosos intimistas e alienantes, enquanto cala a voz dos profetas, ignorando-os ou até matando-os, como o sangue dos mártires da América Latina muito bem testemunha. O Evangelho de hoje nos desafia para que façamos as mudanças radicais necessárias a fim de que possamos acolher a Boa-Nova. E então seremos odres novos que acolhem o Vinho Novo. E então seremos alvos da mensagem de Jesus: “Vinho novo deve ser colocado em odres novos” que são os nossos corações.